José Carlos Neves
Não se
deixe iludir pelas belas uvas na parreira;
Podem estar verdes; pode haver uma ribanceira.
Esta aconteceu ao meu amigo Trasmontano,
e é verdadeira, porque eu fui testemunha da história. Na sua aldeia,
naquela época - teria ele uns cinco ou seis anos - além do pião, não havia quase nada que se parecesse com um
brinquedo. Então, o passatempo preferido da petizada era nadar - quando a
ribeira e os pequenos diques para regar não estavam secos - fazer bolas de neve
e atirá-las uns contra os outros, ou acender fogueiras, quando o inverno lhes
era magnânimo; jogar ao fito (espécie de malha, com pedra plana);
percorrer hortas e pomares, nos quais sempre achavam um tomate ou nabo; algumas
cerejas, figos, nozes, peros, peras, castanhas, ou pêssegos. Algumas vezes o
faziam com o consentimento dos donos - quase sempre havia um de seus
filhos na malta - e em outras,
sem autorização mesmo.
O meu amigo também participava de
algumas dessas inocentes traquinagens infantis, mas ele tinha preferência por
buscar cachos de uvas esquecidos na esteira das vindimas, ainda pendentes das
parreiras e, preferivelmente, já bicados pelos pássaros que, na sua
ornitológica sabedoria, sabiam quais eram os mais doces. Mas, do que ele mais gostava era pegar emprestado o canivete do seu tio Zé,
ir para um meloal, procurar o melão mais amarelado e maduro, cortá-lo do pé,
abri-lo e lambuzar-se todo na sua refrescante, suculenta e doce polpa.
Entretanto, se ele sempre havia sido caçador, um dia tocou-lhe ser,
literalmente, a caça. Numa de suas incursões, no meio da tarde, por um daqueles
meloais, próximos à aldeia, procurava um fruto mais maduro quando, de repente,
sentiu um enorme impacto na sua perna direita, como se ela tivesse sido
parcialmente engolida por uma enorme bocarra de metal saída de dentro da terra.
Isso mesmo: acabara de ser agarrado por uma pesada e serrilhada armadilha de
ferro, que o dono do meloal armara para agarrar visitantes indesejáveis, como
coelhos, lebres e raposas. Por certo não esperava agarrar predadores humanos,
mas, se esse fosse o caso, não custaria nada que eles também aprendessem a não
meter-se onde não deviam.
A armadilha era muito apertada para que
meu amigo conseguisse abrir-lhe as mandíbulas, e demasiado pesada para que um miúdo
de 5 ou 6 anos pudesse arrastá-la, com a perna presa dentro dela, e para que
pudesse sair sozinho dali. Embora estivesse perto, não o era o suficiente para
ser visto da aldeia, nem para que seus gritos e choro fossem ouvidos por
alguém. Bem que ele tentou, mas em vão. A tarde foi passando, e a noite
chegando, e com ela um segundo medo: o de que aparecesse algum dos animais para
os quais a armadilha havia sido preparada; talvez tivesse a companhia de uma
raposa ou, pior que tudo, algum lobo ou, ainda, alguma cobra que resolvesse
arrastar-se por ali. O luar já havia iluminado, parcamente, o meloal - até
podia ver os difusos e bruxuleantes focos de luz das candeias, através das frestas
de janelas e postigos das casas da aldeia -
e o meu pobre amigo já não tinha mais voz, nem esperança, quando, como
anjos salvadores, viu 3 ou 4 pessoas com lampião, vindo a passos ligeiros, em
sua direção, e sem cuidados com os melões, tendo à frente o seu tio Zé.
É desnecessário descrever o alívio
sentido pelo então ainda pequeno Trasmontano. E como, até aquele
momento, não sabia se sentia mais medo
ou dor, com a chegada do socorro, sentiu-se livre de ambos - além da armadilha
- e lá se foi nos braços do tio, seu cada vez mais herói. Pois foi esse mesmo
tio que desconfiara dos locais onde poderia encontrá-lo, embora nunca lhe
passasse pela cabeça que estivesse preso a uma armadilha. Nesse dia, ao voltar,
já ao anoitecer, da lavoura, foi informado do sumiço do sobrinho, e de que
todos já o haviam procurado dentro da aldeia, sem sucesso. Pensou um pouco
sobre os lugares alternativos, e foi à procura do seu canivete. Ao não
encontrá-lo no lugar habitual, não teve mais dúvidas: pegou um lampião, pediu
para que dois ou três grupos de homens procurassem o sobrinho em lugares
diferentes e, com uma intuição de quase certeza, ele liderou o seu grupo para o
meloal ao lado das cortinhas, na saída da aldeia. O resto, o leitor já sabe; o
que não sabe é que havia sido o tio Zé - então já adolescente, mas que
também havia sido menino - que lhe ensinara as artes de usar o canivete, e a
descobrir as delícias dos melões e das melancias. O que nunca ficou claro, para
o meu amigo, foi se o seu tio se esquecera de alertá-lo sobre o perigo de o
homem cair nas próprias armadilhas, ou se, propositalmente, o deixou que
aprendesse por si mesmo que, na vida real, elas não mandam aviso prévio.
Continuo não conseguindo postar meus comentários. Porém, por sugestão sua posso faze-lo via e-mail e é o que faço agora: Mais que o próprio causo (muito interessante e emocionante), agradou-me, e muito, o estilo narrativo - simplesmente agradável, com exibição de um belo texto da nossa língua. Parabéns a você e ao autor desse causo. J.Pedro
ResponderExcluirFreitas e J. Pedro
ExcluirObrigado pelo generoso comentário. É sempre mais fácil narrar fatos reais que vivemos pessoalmente ou próximos de nós. E a memória, se a estimularmos um pouco,também nos ajuda, com mais prazer, nos fatos da infância, do que naqueles mais próximos do presente. Um grande abraço. José Carlos - 23/12/12